sexta-feira, 30 de março de 2012

Novas Oportunidades (10)

O abismo entre o conteúdo da abundantíssima elaboração documental que suporta o labiríntico e incoerente edifício formativo da Iniciativa Novas Oportunidades e o que na realidade acontece e o que na realidade existe, a nível dos cursos EFA, é de tal modo desmesurado que não constitui um exagero afirmar que estamos perante dois mundos (o teórico e o prático) que não conseguem tocar-se.
Na verdade, do que eu conheço da realidade de algumas escolas e centros de formação, pouco ou nada do que se passa na operacionalização dos cursos EFA tem pontos de contacto com o que está definido e estipulado na parafernália de documentos que, supostamente, deveria fundamentar e orientar essa operacionalização.
E podia ser de outro modo? Não podia. Não é possível concretizar uma construção teórica que assenta em pressupostos que nunca foram escrutinados pela experiência, que assenta em contraditórios exercícios de fundamentação e que assenta numa absoluta ignorância e/ou desprezo pela realidade a que supostamente essa construção se deveria aplicar. O erro não está, como é obvio, no objectivo de formar e qualificar os portugueses adultos ou de validar as competências que muitos deles adquiriram de modo não formal e/ou informal ao longo da sua vida profissional e pessoal. O erro, o tremendo erro está no modo leviano como se pretendeu fazê-lo: através, por um lado, de uma monstruosidade teórica que se auto-alimenta e que vive de costas voltadas para o mundo; e, por outro lado, através de uma vergonhosa submissão ao pornográfico oportunismo político dos governos de Sócrates. Estes dois elementos conjugados destruíram a possibilidade de ser realizada uma formação e uma qualificação séria e credível, de que muitos milhares de portugueses necessitavam e vão continuar a necessitar.

As múltiplas elucubrações que os responsáveis técnicos pela Iniciativa Novas Oportunidades (INO) desenvolveram são um obstáculo intransponível para quem desejar formar adultos nos cursos EFA. Trago hoje mais um exemplo — a acrescentar ao que tenho referido nos demais textos dedicados à INO.
Na Unidade de Formação de Curta Duração 7, de Cultura, Língua e Comunicação existem quatro competências que os formandos deverão adquirir — recordo, mais uma vez, que muitos destes alunos, apesar de se encontrarem no nível secundário, revelam muitas dificuldades nas aprendizagens, algumas delas até ao nível do domínio básico da língua portuguesa. Apesar disso, os técnicos da INO acharam por bem definir a primeira competência deste modo:
«Intervir tendo em conta que os percursos individuais são afectados pela posse de diversos recursos, incluindo competências ao nível da cultura, da língua e da comunicação.»
Pressupondo que se consegue compreender com precisão o que significa esta competência, pode perguntar-se: como se sabe se o aluno a possui? Segundo os técnicos da INO há três critérios de evidência que atestam a aquisição desta competência num formando.  Transcrevo somente o primeiro critério: se o formando «Actuar tendo em conta que os percursos individuais são afectados por condições sociais e que as trajectórias se (re)constroem a partir da vivência de diversos contextos e da reconfiguração da posse de diferentes recursos» — e se, para além disto, ainda cumprir os outro dois critérios de evidência (que me escuso de citar para não cansar o leitor) — pode-se considerar que o formando possui a competência acima enunciada...

Segunda competência:
«Agir em contextos profissionais, com recurso aos saberes em cultura, língua e comunicação.»
Dos três critérios de evidência que, segundo os técnicos da INO, servirão para atestar da aquisição desta competência, transcrevo apenas dois, sem fazer comentários:
«— Actuar em contextos profissionais identificando o que são procedimentos científicos e diferentes métodos de produção de conhecimento sobre temáticas relacionadas com a cultura;
— Actuar no mundo global, compreendendo como os diferentes suportes e meios de comunicação fizeram evoluir as inserções profissionais e os modos de trabalhar e produzir riqueza.»

Terceira competência:
«Formular opiniões críticas mobilizando saberes vários e competências culturais, linguísticas e comunicacionais»
Para esta competência, transcrevo, novamente sem comentários, dois critérios de evidência, definidos pelos especialistas da INO:
«— Actuar perante debates públicos reconhecendo a multiplicidade de instituições, agentes e interesses em presença;
—Actuar nas sociedades contemporâneas reconhecendo o papel central dos sistemas de comunicação nas formas de intervenção e construção da opinião pública mundial.»

Quarta e última competência:
«Identificar os principais factores que influenciam a mudança social, reconhecendo nessa mudança o papel da cultura, da língua e da comunicação»
Para esta competência, não resisto a transcrever a totalidade dos designados critérios de evidência (três):
«— Actuar reconhecendo que a evolução das sociedades resulta de processos de mudança social e identificando os principais factores que a influenciam;
— Actuar nas sociedades contemporâneas, tendo em conta que a língua é um elemento constituinte do universo em que vivemos e compreendendo o seu papel na expressão da evolução do pensamento e das mentalidades bem como da evolução científica e tecnológica;
 — Actuar nas sociedades contemporâneas, identificando as teorias fundamentais dos sistemas de comunicação (um para um, um para muitos, muitos para muitos, e em rede) e tendo consciência do carácter instrumental dos media e da eficácia do seu poder.»

Certamente que é difícil compreender como se consegue brincar com três coisas em simultâneo: com os formandos, com os formadores e com o conceito de «evidência». Nada disto é adequado ao nível dos formandos a que se dirige, nada disto serve para orientar os formadores, pela extravagância de que se reveste, e nada disto constitui uma evidência. E já não falo naquilo que é certamente uma minudência para os especialistas da INO: a diferença entre «actuar» e «dizer que actua» (em contexto de sala de aula: ninguém «actua em contextos profissionais...»; ninguém «actua nas sociedades contemporâneas...»; o mais que pode fazer é «dizer que actua»...)

Para concluir este texto, que já vai longo, uma breve referência a três conteúdos, dos dezanove, que fazem parte desta Unidade de Formação de Curta Duração, de Cultura, Língua e Comunicação:

. Arte privada e Arte pública:
- Consequências na gestão do urbanismo e do património.
- Manifestações artísticas diferenciadas: intervenção e apropriação.
- Instituições, Museus e Arquivos.

. A influência dos factores culturais, políticos e físicos nos processos de mudança social ao longo da história:
- Evolução dos princípios estéticos da Arte e sua relação com o real.
- A Cultura artística e seu impacto nas sociedades.

. Efeitos da globalização das políticas financeiras e seus impactos na gestão da promoção da Cultura, nos seus diferentes aspectos e dimensões.

Esta breve amostra de competências, critérios de evidência e conteúdos permite esboçar uma ideia sobre uma das causas que está na origem da gigantesca encenação que é a Iniciativa Novas Oportunidades.